FORÇA ESTRANHA DO REI
Aos seis anos de idade, na manhã festiva do padroeiro de Cachoeiro de Itapemirim (ES), Roberto Carlos (1941), o caçula de uma família modesta, caiu embaixo de uma locomotiva que esmagou sua perna direita, a qual teve de ser amputada logo acima da canela. Andou de muletas até implantar uma prótese aos quinze anos, no momento em que a família se mudou para o subúrbio carioca de Lins de Vasconcelos. Esse acidente pavoroso decerto contribuiu para despertar o interesse pela música, entretido pelas aulas de piano e violino no conservatório local, apartando-o de vez do futuro previsível para jovens de sua condição. A mutilação, o estigma, o empenho em se livrar da condição de vítima, prefiguram o atabalhoado de sofrimentos com que se defrontou desde cedo, sentenciado ao descarte e ao mergulho reflexivo que repercutiu fundo na atividade musical. A desvantagem física como que condensa a matriz de vivências dolorosas que iria moldá-lo, tal como se reflete, desde o início, no semblante retesado do rapaz mestiço, de mirada terna, o qual não deixaria de registrar outras perdas sentidas. As mortes da ex-mulher e da última companheira, ambas de câncer, redundaram em reclusão e ascese. As agruras dessa socialização premida pela fatalidade guiaram a energia do artista ao “desprivatizar” vivências e fantasias.
As circunstâncias em que sucedeu sua aprendizagem ajudam a esclarecer os rumos do envolvimento com o meio artístico, no qual teve a oportunidade de adquirir crescente intimidade com certas feições intrínsecas do manancial com o qual teve de se haver e trabalhar. O fazer artístico - o de Mozart ou o de Roberto Carlos - é uma iniciação prática, existencial e técnica, que trafega entre o manejo de experiências pessoais e a prontidão no emprego dos materiais característicos de um dado gênero.
O “fenômeno” Roberto Carlos, tanto mais impressionante pela durabilidade do encanto, tomou impulso numa conjuntura de arranque da indústria cultural brasileira, ao longo das décadas de 1960 e 1970, os anos de chumbo da ditadura militar e da prosperidade econômica, desta feita ancorada nos ditames impostos pela televisão. Os programas musicais (Astros do Disco, O Fino da Bossa, Jovem Guarda) e os festivais de música popular, nas emissoras Record e Excelsior, eram espetáculos híbridos, tentando conciliar exigências disparatadas, no limiar entre o show de boate, o programa de auditório no rádio e a transmissão em vídeo-tape na tv. Em meio a essa barafunda de suportes e enquadramentos, a forçosa interação entre o artista e uma platéia de fãs ardorosos, dependia tanto da explosão na voz como da ginga libidinosa, do chamariz do vestuário, do acompanhamento instrumental, dos improvisos, dos closes, dos vocalizes. A lente bi-focal da televisão, mirando nos estouros do canto e nos requebros do corpo, ressoava o alarido do auditório como amplificador das seqüências retidas pela edição de imagens. As principais turmas de artistas jovens dessa geração - tanto os moços talentosos do subúrbio carioca, Roberto e Erasmo Carlos, Tim Maia, Wilson Simonal, Jorge Ben, como os rapazes universitários, Caetano Veloso e Chico Buarque - tiveram de inventar harmonia com base em alguma mescla de samba, bolero, bossa-nova e rock, modulado a batida romântica, matizando o cantar conversado e tornando palatável a estridência tio Sam à juventude daqui.
Roberto Carlos cresceu em sintonia com os programas de auditório nas estações cariocas de rádio e, de início, buscou emular diapasão e ênfase dos modelos bem sucedidos de cantor masculino com voz potente, como Francisco Alves, Orlando Silva e Carlos Galhardo. No intento de se profissionalizar, não teve dificuldade de adaptar a voz de pouca extensão à dicção em surdina, quase sussurrada, em boates da zona sul do Rio, nas quais procurava imitar o canto enxuto de João Gilberto. Os primeiros sucessos em disco como roqueiro garantiram o apoio logístico e empresarial de uma gravadora prestigiosa (CBS), e ainda lhe valeram o contrato como âncora do programa “Jovem Guarda”. Era um produto calibrado para atender àquele momento inaugural de segmentação do mercado, endereçado às camadas jovens da audiência.
Naquela conjuntura expansiva da indústria cultural, ele se transformou em agente importador e intermediário da enxurrada de bens culturais de procedência norte-americana - filmes, gibis, quadrinhos e músicas -, ponta de lança de padrões de gosto, comportamento e consumo. Os cabelos compridos, os jeans apertados, os carros velozes, as festas de arromba, os brotos, o escapismo político. A vulgata nativa do rock acolheu ritmos contagiantes, adotou instrumentos afeitos a essa sonoridade barulhenta, como a guitarra, o órgão, a bateria, o sintetizador, e apelou amiúde a versões fantasiosas de sucessos internacionais. Essa frente firmou a moda emergente no mercado brasileiro e, não obstante, brecou a invasão do produto estrangeiro. O baita sucesso dos roqueiros locais, entre os quais se destaca Roberto Carlos, abriu caminho a experimentos mais ousados que desaguaram no movimento tropicalista.
A formação musical precária, o autodidatismo, o baixo cabedal escolar da família, o repertório cultural acanhado, estão na raiz dessa cambulhada de influências, da franca receptividade à música estrangeira, desvantagens que lhe permitiram abrasileirar o influxo estrangeiro com antena sensível às mudanças nas preferências do público jovem.
Junte-se a tais condicionantes o verismo contundente de sua presença pública, tão perceptível na imagem de vulnerabilidade estampada nos vincos do rosto, no olhar desamparado, no travo doído na boca, na quentura da fisionomia afetuosa, podendo-se recompor as diversas fases da história pessoal pelas fotos na capa de seus álbuns. Essa imagem tão pungente de homem comum, a cara tumultuada em que muitos de nós conseguem se enxergar, de sujeito vivido, têm muito a ver com o impacto longevo de sua arte.
O arrastão existencial e o vigor estético de Roberto Carlos derivam dessa confluência entre injunções biográficas, marcas estilísticas e imersão no universo de representações e valores de uma cultura popular destinada à fruição de um espectro diversificado de públicos, com máxima dispersão de traços morfológicos. Nesse sentido, a força estranha do rei se apóia tanto nas coordenadas prosaicas da vida cotidiana, como no fundo obscurantista de crendices e preconceitos entranhados no delírio bem fundado do sonho societário. Assim como as melhores canções abordam situações e sentimentos rotineiros da parceria amorosa - paixão e desgosto, gamação e abandono, tesão e fadiga -, as composições de fundo religioso encampam por vezes o apelo à intervenção mágica, ao milagre, ao misterioso desígnio do além. Certas trilhas românticas descambam na pieguice, no chavão, enquanto algumas músicas em chave mística retomam com graça as toadas de procissões populares. Nessa junção de motivos eróticos e carolas, Roberto Carlos representa o que há de mais abusado e de mais retrógrado no caldeirão de materiais expressivos dessa versão mercantil da mídia brasileira.
O fato de ser, ao mesmo tempo, intérprete esplêndido e compositor inspirado valeu como sucedâneo de uma educação musical, que lhe permitiu tirar partido de seus trunfos em ambos os domínios. O timbre pulsante, liga de metal e cristal, a nitidez da emissão, o fraseado enxuto e dolente, o sotaque indecifrável, a estonteante divisão da letra, o modo sutil de armar o crescendo, a explosão sustentada do acorde, a resolução escandida da estrofe, eis alguns dos procedimentos de um quase compêndio prático dos recursos canoros de um “lírico” dos tempos modernos.
Uma voz máscula com acentos de fragilidade, com repiques de soprano, um registro sedutor de adolescente com entonações escuras. Algo disso permite aproximá-lo dos expedientes gerados nos primórdios da ópera barroca. Em tal regime de convenções, a voz cultivada do “castrado” era apreciada pela sua capacidade de expressar emoções fortes e comover, e só poderia lograr tais efeitos na performance ambígua de registros alusivos a qualquer sexo ou idade.
Além de haver mantido o frescor e a potência de um jovem, a respiração calibrada, o portamento arrebatador, a faísca no sustenido, a agilidade no ataque, a cantilena bem estirada, fazendo da voz o símile de arco que comprime ou libera o som represado, a exemplo dos melhores praticantes do bel canto, Roberto Carlos transmite a sensação de cantar sem esforço, fazendo passagens com gradações suaves entre os extremos da tessitura, com vibrações intensas em meio à percussão da voz. Em lugar de se valer disso para proezas vocais, ele pratica um canto destituído de floreios e gorjeios, sem adornos e penduricalhos, o estilo simples que Monteverdi advogava para os personagens terrenos, naquelas situações em que deveriam exprimir o êxtase lírico em lamentos de colorido macio. Esse estilo desempenado ora parece estar falando na canção, ora parece estar cantando enquanto fala, conforme o teor das emoções mimetizadas, misturando assim o recitativo, a declamação, o legato, outra especialidade de nosso rei. Por tudo isso, não importa tanto o travo ideológico dos versos, o ouvinte acaba tendo prazer em fruir a linha melódica do vocalista a despeito do que esteja dizendo. Feito ao alcance de pouca gente.
Roberto Carlos é um cavalo de santo cheio de marra e cicatrizes, nutrido de pulsões desconjuntadas, beirando o trágico, e ungido nesse mandato de Jesus do entretenimento por uma anônima delegação coletiva.
Sergio Miceli
Professor titular de sociologia na Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Nacional estrangeiro, história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
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