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>>A invenção da torcida : futebol e música no Brasil, par Bernardo Buarque de Hollanda


Paris, le 22 août 2009

A invenção da torcida : futebol e música no Brasil

“– Flamengo, Flamengo/ Tua glória é lutar/ Flamengo, Flamengo/ Campeão de terra e mar.”

Com este refrão adaptado do hino oficial do clube, a Charanga saudou por quase cinqüenta anos ininterruptos a entrada de seu time em campo. Nos famosos alçapões do subúrbio, com suas precárias arquibancadas de madeira, ou no maior estádio do mundo, o Maracanã, com sua engenhosa armação de concreto, a pequena orquestra musical fez-se presente com seus instrumentos, movida pela devoção ao clube, mas também pelos dez contos de réis e pela caninha oferecida a seus componentes nos intervalos dos jogos. À sua frente, Jaime Rodrigues de Carvalho, um simples funcionário público que no decorrer das décadas iria adquirir projeção nacional e internacional como chefe de torcida do Flamengo e da Seleção Brasileira. Foi em 1942 que surgiu a Charanga Rubro-Negra, contribuindo decisivamente para a modificação do comportamento dos torcedores nos estádios de futebol. Foi depois da Charanga que marchinhas de carnaval passaram a ser tocadas durante os jogos, intercalando os solenes hinos dos clubes, que davam uma conotação épica e heróica às partidas. Foi também por causa da Charanga que as camisas dos times, até então de uso exclusivo dos atletas, passaram a vestir os torcedores. Se antes os espectadores dos jogos abanavam fitas e lenços coloridos durante a partida, depois que seus integrantes passaram a confeccionar artesanalmente as camisas do Flamengo, grupos compactos de torcedores com os uniformes de seus times começam a se destacar nos estádios. Até os anos 1940, a roupa dos espectadores de futebol não se distinguia da vestimenta das elegantes platéias de teatro, cinema e ópera, o habitual terno com gravata. A camisa do uniforme populariza a paisagem das arquibancadas. Em um setor reservado e separado dos demais por um cordão de isolamento, as torcidas uniformizadas são convocadas a comparecer por rádios e jornais, em número que às vezes chega a mil integrantes. Após a realização de ensaios durante a semana, elas executam coreografias que usam painéis, cartões e sinalizadores luminosos, ainda mais atraentes nas partidas noturnas. Com o aparecimento da Charanga, o público do futebol transforma sua condição inicial de assistência. As torcidas assumiam um caráter ativo nas disputas, encorajando seus times ou intimidando seus adversários.

A Charanga foi idéia do baiano Jaime de Carvalho, um apaixonado por futebol que na final do Campeonato Carioca de 1942 chegou cedo ao estádio carregando a única bandeira do Flamengo existente na cidade – na véspera, ele conseguira tirar a bandeira do mastro da sede do clube. Ao lado de Jaime, quinze músicos com instrumentos de percussão, clarins, pistom e um trombone. A presença daquele grupo ruidoso instalado na arquibancada causou espanto, pois até aquele momento a música só fazia parte das comemorações fora do estádio, em cortejos de carros, em bondes e em passeatas que percorriam diversos pontos da cidade.



O sucesso da estréia do grupo levou a banda a acompanhar o time com regularidade. O apelido gaiato de “charanga” – que tanto quer dizer pequena orquestra de instrumentos de sopro e percussão quanto, na gíria, música desafinada – surgiu depois de um comentário do compositor – e locutor de futebol, além de torcedor do Flamengo – Ary Barroso, em seu programa de rádio : “Me desculpem, mas isso não é banda nem aqui nem no caixa-prego”. Em 1943, a Charanga enfrentaria resistências por parte do meio esportivo. Isso porque a tal desafinação do grupo revelou-se um recurso estratégico não só para prestar apoio ao Flamengo, mas, sobretudo, para atrapalhar a concentração dos adversários. Nos acanhados estádios de futebol da época, o público ficava muito próximo ao gramado. A Charanga se instalava atrás do gol para distrair e irritar os goleiros das equipes adversárias. Irritação que chegou aos tribunais desportivos, quando o São Cristóvão tentou impugnar o resultado de um jogo alegando que a Charanga tirava a concentração de seu goleiro – que não conseguiu defender quatro gols naquela partida. Foi o bastante para dirigentes de outros clubes tentarem banir a orquestra em definitivo. Não conseguiram, pois o então presidente da Federação Metropolitana de Futebol, Vargas Neto, achava que a música contribuía para atenuar as brigas entre os torcedores e para abafar os palavrões, cada vez mais ouvidos durante as partidas. Vargas Neto era cronista do Jornal dos Sports e compartilhava os mesmos princípios de seu diretor, Mário Filho, jornalista que se dedicava, desde a década de 1930, a promover as escolas de samba e o futebol profissional na cidade como verdadeiros espetáculos de massa. Para eventos de tal monta, era necessária a constituição de um público participante que assistisse às competições de maneira festiva e animada, sem arroubos ou excessos de conduta. A presença de um chefe de torcida que auxiliasse o trabalho do chefe de polícia era, portanto, bem-vinda. Em meio a críticas e a incentivos, o grupo de Jaime foi se firmando nos três primeiros anos de existência, graças também aos sucessivos triunfos do Flamengo, que se sagrou pela primeira vez tricampeão carioca, com a vitória de 1944 em seguida aos triunfos de 1942 e 43.



A inauguração do Maracanã em 1950 marca uma nova fase na participação de Jaime de Carvalho como torcedor : foi escolhido para assumir a chefia da torcida da Seleção Brasileira no estádio recém-inaugurado, construído especialmente, porque o Brasil iria sediar a Copa do Mundo naquele ano – o primeiro torneio depois de doze anos de intervalo, em virtude da Segunda Guerra Mundial. O Brasil queria mostrar à Europa a capacidade de organização de uma nação. A preocupação em passar a imagem de um país pacífico e cordato fazia com que as autoridades esportivas delegassem a Jaime de Carvalho boa parte do encargo de orientar os torcedores no estádio. Uma intensa campanha desenvolvida pela imprensa ressaltava a inconveniência do arremesso de objetos no gramado, do uso de palavrões, e recomendava a chegada antecipada ao estádio, a fim de evitar tumultos na entrada. Os meios de comunicação davam inteiro aval à Charanga nos jogos do Brasil, que contava ainda com o patrocínio de uma loja de roupas a anunciar suas atividades, seus preparativos e suas surpresas para os dias de jogo. A reação pacífica do público na partida final da competição, após a inesperada derrota para o Uruguai, valeu aos torcedores inúmeros elogios, inclusive do presidente da Fifa. Em casa, os brasileiros haviam dado uma demonstração de espírito esportivo, sabendo perder com dignidade. Tamanho foi o êxito de Jaime de Carvalho na organização dos torcedores brasileiros que ele foi convocado para acompanhar a Seleção Brasileira na Copa seguinte, na Suíça, em 1954, a pedido do jogador Didi e de outros membros da delegação. O Jornal dos Sports lançou uma campanha para custear a viagem, concedendo a Jaime não só a passagem como o status de “embaixador” da torcida brasileira no exterior. Ao desembarcar na Suíça, Jaime levava na bagagem vários apetrechos, entre eles dez couros para confeccionar surdos, trezentas gaitinhas, duas sirenes e um par de pratos de banda de música. Na estréia da Seleção, entrou em campo junto com os radialistas brasileiros e estendeu sobre o alambrado uma faixa verde-amarela que tinha, bordado em branco, o lema “Avante, Brasil !” , uma novidade em âmbito internacional.

Começava um ciclo de viagens internacionais de Jaime, sempre na condição de animador de torcidas – e de equipes – esportivas. No mesmo ano de 1954, Jaime participaria do Campeonato Sul-Americano, na Argentina. Sua mulher, Laura de Carvalho, ficou responsável pela confecção da maior bandeira do Brasil feita até então, com oito por dez metros, que seria desfraldada na entrada do time em campo. Outra inovação do líder da Charanga : a utilização da imensa bandeira para concentrar os torcedores de um país dentro de um estádio, fato inédito na época. A experiência das viagens se tornaria assim recorrente ao longo das décadas e perduraria até o fim da vida de Jaime de Carvalho. Sua participação se estenderia à Copa do Mundo do Chile, em 1962, quando o Brasil obteve o bicampeonato ; às partidas eliminatórias no Paraguai, válidas para o Mundial do México, em 1970, quando o país torna-se tricampeão ; e à Copa do Mundo da Alemanha, em 1974, onde assistiria aos treinos e organizaria várias passeatas pelas cidades alemãs. Jaime só não esteve na Copa da Suécia, em 1958, e na da Inglaterra, em 1966, por problemas de família.

O prestígio adquirido com a atuação nos jogos da Seleção Brasileira levou a Charanga a expandir suas atividades além do futebol profissional e aos embates do campeonato carioca. Jaime passaria a seguir o Flamengo de trem, nas partidas válidas pelo torneio Rio-São Paulo de clubes, campeonato instituído na década de 1950. A Charanga se integraria a diversas modalidades esportivas em que o Flamengo estivesse envolvido, como o remo, o vôlei e o basquete. Os esportes amadores também seriam alvo de interesse da agremiação, que marcaria presença ainda nos Jogos da Primavera e nos Jogos Infantis, eventos tradicionais da cidade. Nos anos 1960, o Jornal dos Sports relançou o Duelo de Torcidas – competição que já promovera em 1936 e também na década de 1950. Um júri reunido pelo jornal avaliava a performance dos torcedores nas arquibancadas com base em critérios estéticos que enfatizavam a qualidade e a vibração das baterias, a originalidade e a criatividade das fantasias, a quantidade e o tamanho das bandeiras, entre outros quesitos. Tratava-se de levar para a arquibancada o mesmo espírito esportivo vivenciado dentro de campo e de transferir para os estádios a lógica da competição dos desfiles das escolas de samba.



Esses estímulos da imprensa esportiva acabariam por impregnar os jogos de uma ambiência carnavalesca. Os cronistas não mediriam esforços para descrever, por meio de metáforas, a beleza proporcionada pela agitação de sirenes, flâmulas, confetes, serpentinas, estandartes e balões multicoloridos. Em tom grandiloqüente, Mário Filho se referia ao “rumor oceânico da multidão” e aos “abalos sísmicos” provocados pelo frenesi da torcida. Já Vargas Neto salientava “as cachoeiras de papéis picados”, que produziam uma “cascata de arco-íris”. Nelson Rodrigues, por sua vez, imprimia à comemoração dos gols o timbre poético que lhe era característico : “no ar, por muito tempo, o grito em flor” ; “no mar, uma flora de bandeiras flamengas”.



Para a produção de semelhante espetáculo, chefes de torcida como Jaime, Dulce Rosalina, Tarzã e Paulista se mobilizavam durante a semana inteira. Jaime arregimentava as crianças da vizinhança de sua casa em Niterói para fazer as bandeirinhas, comprava tecidos para as bandeiras e buscava subvenção junto aos dirigentes do clube para vencer os torneios entre as torcidas. No caso da Charanga, a preparação culminava na véspera da partida, quando dona Laura passava a noite fazendo refeições para receber, na manhã seguinte, os trinta músicos que compunham o grupo. Depois do lanche matutino, os integrantes da banda se encaminhavam para o Maracanã, a fim de demarcar o território, distribuir as tarefas, desfraldar as bandeiras, amarrar as faixas e afinar os instrumentos. Embora o jogo principal só começasse à tarde, a Charanga costumava chegar ao estádio às dez horas da manhã.

Essa rotina de campeonatos ficaria comprometida no final da década de 1960, quando Jaime de Carvalho adoeceu e precisou se tratar de problemas de saúde, como hipertensão e diabetes. O afastamento temporário de Jaime dos estádios criou um vácuo na liderança da torcida do Flamengo, levando ao surgimento de uma crise em seu interior. Um grupo de torcedores decidiu abandonar a Charanga e criar uma torcida organizada própria, que chamaram de Poder Jovem – e que mais tarde se transformaria na Torcida Jovem do Flamengo. Em uma época marcada pela rebeldia de jovens no mundo inteiro, destacando-se o movimento da juventude francesa em maio de 1968, a nova geração de torcedores também queria ter participação diferente nos estádios, protestando e criticando as atuações da equipe, procedimento inconcebível para Jaime de Carvalho, que não admitia vaias ou qualquer tipo de hostilidade aos jogadores. Com o questionamento de sua autoridade, o ato de torcer tomaria outros rumos, gerados pela cisão na unidade da torcida.



Naquela época, entretanto, Jaime era respeitado na cidade e se tornava um personagem célebre no meio esportivo, homenageado tanto pelos flamenguistas quanto por torcedores de outros times, que o consideravam o “chefe dos chefes” de torcida. Jaime de Carvalho viria a receber ainda o título de torcedor número um do Rio, outorgado pelo capitão de policiamento do Maracanã. Porta-voz dos alvinegros, Tarzã subiu ao palco no aniversário da Charanga com uma enorme bandeira do Botafogo, entregou a Jaime uma estatueta com a figura de um pescador e assim se pronunciou : “Comparo um chefe de torcida a um pescador, sempre pescando simpatias. Jaime é um pescador de simpatias”. A homenagem principal viria no ano de 1973, quando recebeu o título de cidadão honorário do Estado da Guanabara pelos serviços prestados ao “clube mais querido do Brasil”.

Jaime de Carvalho permaneceria no comando da Charanga até seu falecimento, em 1976. A chefia da torcida passou para sua mulher, Laura, que manteria ativa a Charanga durante a década de 1980. Sua retirada dos estádios ocorreu na década seguinte. As torcidas organizadas passam a usar a batida funk para embalar seus cantos e, com maior capacidade de mobilização, apropriam-se do espaço ocupado pela Charanga. Sem mais ecoar como outrora, a orquestra se deslocou para as cadeiras comuns do Maracanã e, pouco tempo depois, retirou-se do estádio, limitando sua atuação às partidas amadoras ou aos eventos sociais do clube.

Precursor de um movimento de aproximação entre a música e o futebol, elementos-chave na construção da imagem nacional, Jaime de Carvalho ajudou a formar uma platéia festiva e competitiva nos estádios do Rio de Janeiro durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Encarnou, assim, a abnegação por um clube, emblema de um cotidiano compartilhado por milhares de torcedores. Ao criar uma atmosfera comunitária, promoveu a integração de professores, advogados, escriturários, magistrados, médicos, operários, militares, até expoentes da Era do Rádio, como a cantora Ângela Maria e o cantor Blecaute. Embora não tenha pertencido ao grupo, seria Wilson Baptista o sambista que melhor exaltaria a profissão de fé do torcedor : “Pode chover,/ pode o sol me queimar/ que eu vou pra ver/ a Charanga do Jaime tocar :/ – Flamengo, Flamengo !/ tua glória é lutar,/ quando o Mengo perde/ eu não quero almoçar,/ eu não quero jantar.”

Bernardo Buarque de Holanda

Le site du Clube de Regatas do Flamengo et la notice Wikipedia.



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